25/01/2010 - RESOLUÇÃO Nº 1 -
CONAD
Dispõe sobre a observância, pelos
órgãos da Administração Pública, das decisões do Conselho Nacional de Políticas
sobre Drogas - CONAD sobre normas e procedimentos compatíveis com o uso
religioso da Ayahuasca e dos princípios deontológicos que o informam.
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL
DE POLÍTICAS SOBRE DROGAS - CONAD, no uso de suas atribuições legais, e tendo
em vista as disposições contidas no artigo 10 do Decreto nº. 5.912, de 27 de
setembro de 2006, e Considerando o Relatório Final elaborado pelo Grupo
Multidisciplinar de Trabalho (GMT), instituído pela Resolução nº. 5 - CONAD,
publicada no D.O.U. de 10/11/2004;
Considerando que o referido
Relatório Final foi aprovado pelo CONAD, consoante Ata de sua 2ª Reunião
Ordinária, realizada em 06 de dezembro de 2006;
Considerando que o Grupo
Multidisciplinar de Trabalho (GMT) baseou-se, em seu Relatório Final, na
legitimidade do uso religioso da Ayahuasca, como matéria já examinada e
decidida pelos plenários do antigo Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN) e
do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD), cabendo ao GMT, no
âmbito de sua competência, definida na Resolução nº. 5 - CONAD, 2004,
identificar normas e procedimentos compatíveis com o uso religioso da Ayahuasca
e implementar o estudo e a pesquisa sobre o uso terapêutico da Ayahuasca em
caráter experimental;
Considerando que nas seis
reuniões de trabalho o Grupo Multidisciplinar de Trabalho (GMT) discutiu a
seguinte pauta (Introdução, itens 8 e 9 do Relatório Final):
"cadastramento das entidades; aspectos jurídicos e legais para
regulamentação do uso religioso e amparo ao direito à liberdade de culto;
regulação de preceitos para produção, uso, envio e transporte da Ayahuasca;
procedimentos de recepção de novos interessados na prática religiosa; definição
de uso terapêutico e outras questões científicas (item 8 do Relatório Final);
Considerando que o objetivo final
do Grupo Multidisciplinar de Trabalho (GMT), nos termos da Resolução nº. 5 -
CONAD, 2004, é identificar "o que é preciso fazer" para atender aos
diversos itens que integram os direitos e obrigações pertinentes ao "uso
religioso da Ayahuasca" (item 9 do Relatório Final);
Considerando a decisão do INCB
(International Narcotics Control Board), da Organização das Nações Unidas,
relativa à Ayahuasca, que afirma não ser esta bebida nem as espécies vegetais
que a compõem objeto de controle
internacional;
Considerando, finalmente, as
"Proposições" do Grupo Multidisciplinar de Trabalho (GMT), em seu
Relatório Final, numeradas de 1 a 3 e suas respectivas alíneas;
Resolve:
Art. 1º Determinar a publicação,
na íntegra, do Relatório Final, do Grupo Multidisciplinar de Trabalho (GMT),
fazendo-o parte integrante da presente Resolução.
Art. 2º Independentemente da
publicação oficial, dar ampla publicidade à presente Resolução, com o anexo
Relatório Final, através da entrega deste expediente a todos os conselheiros
integrantes do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD), inclusive
para encaminhamento às instituições que representam, para os fins previstos na
ementa da presente Resolução.
Art. 3º Esta Resolução entra em
vigor na data de sua publicação.
JORGE ARMANDO FELIX
Observação:
Na sequencia vem publicado
integralmenteo o relatório final (documento de deontologia) que havia sido
aprovado pelo GMT em 23/11/06.
Esta resolução foi publicada no
Diário Oficial da União - No. 17 - de 26 de Janeiro de 2010 - na página 58,
dando finalmente a chancela governamental.
23/11/2006 - RELATÓRIO FINAL DO
GMT
GRUPO MULTIDISCIPLINAR DE
TRABALHO - GMT- AYAHUASCA
RELATÓRIO FINAL
I - INTRODUÇÃO
1. O CONAD é o órgão normativo do
Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD – e suas decisões
“deverão ser cumpridas pelos órgãos e entidades da Administração Pública
integrantes do Sistema” (arts. 3o, I, 4o, 4o, II e 7o, do Decreto no 3.696, de
21/12/2000). Assim, no exercício de sua competência legal aprovou parecer da
CATC que, por sua vez, adotou pareceres do colegiado que o precedeu – o CONFEN
– e abordou outros aspectos pertinentes ao tema “o uso religioso da ayahuasca”
cumprindo destacar a observação final e as conclusões do parecer que o CONAD
aprovou: “que fique registrado em ata, para fins, inclusive de utilização pelos
interessados, que não pode haver restrição, direta ou indireta, às práticas
religiosas das comunidades, baseada em proibição do uso ritual da Ayahuasca”.
2. O referido parecer concluiu:
“a) a câmara ratifica as decisões anteriores do colegiado, com os aditamentos
do presente parecer, conforme referido no ponto no 4; b) recomenda-se a
consolidação, em separata, de todas as decisões supracitadas, para acesso e
utilização dos interessados; c) a liberdade religiosa e o poder familiar devem
servir à paz social, à qual se submete a autonomia individual; d) deve ser
reiterada a liberdade do uso religioso da Ayahuasca, tendo em vista os
fundamentos constantes das decisões do colegiado, em sua composição antiga e
atual, considerando a inviolabilidade de consciência e de crença e a garantia
de proteção do Estado às manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras, com base nos arts. 5o, VI e 215, § 1o da Constituição do
Brasil, evitada, assim, qualquer forma de manifestação de preconceito”.
3. A Resolução nº 05 – CONAD, de
10 de novembro de 2004, tem por objetivo contribuir para a plena implementação
do que foi discutido e aprovado ”sobre o uso religioso da Ayahuasca”, e para
tanto foi constituído o GMT que, assim, terá por premissas as questões
decididas pelo CONAD, para laborar, com ampla liberdade, no “estudo do que é
preciso fazer”, ou seja, na formulação de documento que “traduza a deontologia
do uso da Ayahuasca”.
4. O Grupo Multidisciplinar de
Trabalho, instituído pela Resolução nº. 5 CONAD, de 04 de novembro de 2004,
para levantamento e acompanhamento do uso religioso da Ayahuasca, bem como para
a pesquisa de sua utilização terapêutica, em caráter experimental, foi
oficialmente instalado pelo Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança
Institucional da Presidência da República e Presidente do Conselho Nacional
Antidrogas, JORGE ARMANDO FELIX, em 30 de maio de 2006, no Palácio do Planalto,
em Brasília-DF, e teve como objetivo final a elaboração de documento que
traduzisse a deontologia do uso da Ayahuasca, como forma de prevenir seu uso
inadequado.
5. AYAHUASCA, aqui, é referida de
modo genérico, para manter a uniformidade do texto e a harmonia com a
nomenclatura utilizada nos atos oficiais do CONAD, mas é conhecida por diversos
outros nomes, conforme a comunidade que o usa no Brasil ou no Exterior,
destacando-se as expressões mais conhecidas “HOASCA”, “SANTO DAIME” e
“VEGETAL”, compostos, indistintamente, pelo cipó Banisteriopsis caapi (jagube,
mariri etc) e pela folha Psychotria viridis (chacrona, rainha etc.).
6. Nos termos da referida
Resolução, o GMT foi composto por seis estudiosos , indicados pelo CONAD, das
áreas que atenderam, dentre outros, os seguintes aspectos: antropológico
(representado pelo Dr. Edward John Baptista das Neves MacRae),
farmacológico/bioquímico (Dr. Isac Germano Karniol), social (Drª Roberta
Salazar Uchoa), psiquiátrico (Dr. Dartiu Xavier da Silveira Filho) e jurídico
(Drª Ester Kosovski) e seis membros, convidados pelo CONAD, representantes dos
grupos religiosos que fazem uso da Ayahuasca, eleitos em Seminário realizado em
Rio Branco nos dias 9 e 10 de março de 2006, a saber: Linha do Padrinho
Sebastião Mota de Melo: Alex Polari de Alverga; Linha do Mestre Raimundo Irineu
Serra: Jair Araújo Facundes e Cosmo Lima de Souza; Linha do Mestre José Gabriel
da Costa: Edson Lodi Campos Soares; Linha Independente (Outras Linhas): Luis
Antônio Orlando Pereira e Wilson Roberto Gonzaga da Costa. Considerando que a
linha do Mestre Daniel Pereira de Matos, popularmente conhecida como linha da
Barquinha, decidiu não participar do GMT, conforme carta endereçada ao CONAD,
foi realizada durante o seminário eleição entre os suplentes já eleitos das
linhas presentes para o preenchimento da vaga em aberto. Nesta ocasião foi
eleito mais um representante da linha do Mestre Raimundo Irineu Serra.
7. O GMT contou com o apoio da
Secretaria Nacional Antidrogas, representada pela Diretora de Políticas de
Prevenção e Tratamento, Drª Paulina do Carmo Arruda Vieira Duarte, e da
Assessoria Executiva do CONAD, representada pelas Sras. Déborah de Oliveira
Cruz e Maria de Lourdes Carvalho. Em suas reuniões ordinárias contou com o
apoio do Dr. Domingos Bernardo Gialluisi da Silva Sá, Jurista, Membro Titular
do CONAD e da Câmara de Assessoramento Técnico Científico, também representada
pelo Dr. Marcelo de Araújo Campos e pela Drª Maria de Lourdes Zenel.
8. Além da primeira reunião em
que os membros do GMT foram empossados, foram realizadas mais seis reuniões de
trabalho na Sala de Reuniões da Secretaria Nacional Antidrogas, nos dias 28/06,
28/07, 28/08, 23 e 24/10 e 23/11, todas registradas em atas, durante as quais
se discutiu a seguinte pauta: cadastramento das entidades; aspectos jurídicos e
legais para regulamentação do uso religioso e amparo do direito à liberdade de
culto; regulação de preceitos para produção, uso, envio e transporte da
Ayahuasca; procedimentos de recepção de novos interessados na prática
religiosa; definição de uso terapêutico e outras questões científicas;
Ayahuasca, cultura e sociedade; e, sistematização do trabalho para elaboração
do documento final.
9. O objetivo final do GMT, nos
termos da Resolução nº 05/04, do CONAD, é identificar “o que é preciso fazer”
para atender aos diversos itens que integram os direitos e obrigações
pertinentes ao “uso religioso da Ayahuasca”. O “estudo” desse “o que é preciso
fazer” constituiu-se, exatamente, nas atividades desenvolvidas pelo GMT,
traduzindo, assim, a “deontologia do uso da Ayahuasca”: (deon, do grego: “o que
é preciso fazer” + logos, também do grego: “estudo” ).
II - HISTÓRICO DA REGULAMENTAÇÃO
DO USO DA AYAHUASCA
10. A instituição do Grupo
Multidisciplinar de Trabalho expressa dever constitucional do Estado Brasileiro
de proteger as manifestações populares e indígenas e garantir o direito de
liberdade religiosa. Representa o coroamento do processo de legitimação do uso
religioso da Ayahuasca no país, iniciado há mais de vinte anos, com a criação do
1º Grupo de Trabalho do CONAD (na época CONFEN), designado para examinar a
conveniência da suspensão provisória da inclusão da substância Banisteriopsis
caapi na Portaria nº 02/85, da DIMED (Resolução nº. 04/85, do CONFEN).
11. Este primeiro estudo, após
dois anos, com a realização de várias pesquisas e visitas às comunidades
usuárias em diversos Estados da Federação, principalmente ao Acre, Amazonas e
Rio de Janeiro, resultou em extenso relatório , de setembro de 1987, subscrito
pelo então Conselheiro do CONFEN, Doutor Domingos Bernardo Gialluisi da Silva
Sá, Presidente do Grupo de Trabalho, que concluiu que as espécies vegetais que
integram a elaboração da bebida denominada de Ayahuasca ficassem excluídas das
listas de substâncias proscritas pela DIMED.
12. Esta conclusão foi aprovada
pelo plenário do antigo Conselho Federal de Entorpecentes, em reunião de
setembro de 1987, de sorte que a suspensão provisória da interdição do uso da
Ayahuasca, levada a termo pela Resolução nº 06, do CONFEN, de 04 de fevereiro
de 1986, tornou-se definitiva, com a exclusão da bebida e das espécies vegetais
que a compõem das listas da DIMED.
13. A despeito disso, em 1991, em
face de denúncia anônima, por iniciativa do então Conselheiro do CONFEN, Paulo
Gustavo de Magalhães Pinto, Chefe da Divisão de Repressão a Entorpecentes do
Departamento de Polícia Federal, a “questão do uso da Ayahuasca” foi
reexaminada.
14. Disso resultou mais uma vez,
por parte do CONFEN, a realização de estudos acerca do contexto de produção e
do consumo da bebida, desenvolvidos pelo Doutor Domingos Bernardo Gialluisi da
Silva Sá, o qual, em parecer conclusivo de 02/06/92, aprovado por unanimidade
na 5ª Reunião Ordinária do CONFEN realizada na mesma data, considerou que não
havia razões para alterar a conclusão proposta em 1987, no relatório final já
mencionado .
15. Dez anos depois, em face de
denúncias de uso inadequado da bebida Ayahuasca, a maior parte divulgada na
imprensa e outras tantas dirigidas aos órgãos do Poder Público, notadamente
CONAD, Polícia Federal e Ministério Público, fato que está amplamente
documentado na consolidação das decisões e estudos do CONAD e de outras
instituições acerca do uso da Ayahuasca, novo Grupo de Trabalho foi definido
pela Resolução nº 26, de 31 de dezembro de 2002.
16. De acordo com esta resolução,
o GT deveria ser composto por diversas instituições , com base no princípio da
responsabilidade compartilhada, agora com o objetivo de fixar normas e
procedimentos que preservassem a manifestação cultural religiosa, observando os
objetivos e normas estabelecidas pela Política Nacional Antidrogas e pelos
diplomas legais pertinentes. Não há registro de que este grupo tenha sido
constituído.
17. Em 24 de março de 2004 o
CONAD solicitou à Câmara de Assessoramento Técnico Científico a elaboração de
estudo e parecer técnico-científico a respeito de diversos aspectos do uso da
Ayahuasca, ocasião em que o referido órgão de assessoramento do CONAD emitiu
parecer apresentado e aprovado na Reunião do CONAD de 17/08/04, o qual serviu
de fundamento à Resolução nº 5, do CONAD, de 04/11/04, que institui o atual
Grupo Multidisciplinar de Trabalho.
III - ANDAMENTO DAS REUNIÕES
18. A fim de atender aos termos
da resolução que o instituiu, o GMT teve como primeira tarefa, depois de eleger
o Presidente e o Vice-Presidente do Grupo, respectivamente Dr. Dartiu Xavier da
Silveira Filho e Edson Lodi Campos Soares, a elaboração do Cadastro Nacional
das Entidades Usuárias da Ayahuasca - CNEA.
19. Acerca desse tema, muitos
foram os questionamentos levados em consideração pelo grupo, a começar pela
finalidade do referido cadastro, que não deve servir de mecanismo de controle
estatal sobre o direito constitucional à liberdade de crença (art. 5º, VI, CF).
Discutiu-se também acerca de sua objetividade, de sorte que não constassem
exigências que viessem a invadir o direito individual à intimidade, vida
privada e imagem dos usuários (art. 5º, X, CF). Nesse sentido, chegou-se ao
consenso de que responder ou não ao cadastro seria uma faculdade das entidades.
20. Fixados esses parâmetros, o
formulário de cadastro foi colocado à disposição dos interessados, acompanhado
de carta explicativa e cópia da Resolução nº. 05/04, do CONAD. Até a presente
data foi cadastrada quase uma centena de entidades, dando também uma dimensão
parcial das diversas práticas que são adotadas pelas entidades que fazem uso da
Ayahuasca no Brasil. O cadastro continua disponível às entidades interessadas.
21. O GMT procurou destacar e
consolidar as práticas que para as próprias entidades representam o uso
religioso adequado e responsável, anteriormente estabelecidos na “Carta de
Princípios”, resultado do 1º Seminário das entidades da Ayahuasca, realizado em
Rio Branco em 24 de novembro de 1991. Nas discussões priorizaram-se os
seguintes temas: definição de uso ritual, comércio, turismo, publicidade,
associação da Ayahuasca com outras substâncias, criação de novos centros, auto-sustentabilidade
das entidades, procedimentos de recepção de novos interessados, curandeirismo,
uso terapêutico, assim como definição de mecanismos para tornar efetivos os
princípios deontológicos formulados. A maior parte das deliberações do grupo foi
consensual e estão sintetizadas no item V – Conclusão.
IV – TEMAS DISCUTIDOS
IV.I – USO RELIGIOSO DA AYAHUASCA
22. Ao longo de décadas o uso
ritualístico da Ayahuasca – bebida extraída da decocção do cipó Banisteriopsis
caapi (jagube, mariri etc.) e da folha Psychotria viridis (chacrona, rainha
etc.) – tem sido reconhecido pela sociedade brasileira como prática religiosa
legítima, de sorte que são mais do que atuais as conclusões de relatórios e
pareceres decorrentes de estudos multidisciplinares determinados pelo antigo
CONFEN, desde 1985, que constatavam que “há muitas décadas o uso da Ayahuasca
vem sendo feito, sem que tenha redundado em qualquer prejuízo social conhecido”
.
23. A correta identificação do
que é uso religioso, segundo os conceitos e práticas ditadas, a partir das
próprias entidades que fazem uso da Ayahuasca, permitirá assegurar a proteção
da liberdade de crença prevista na Constituição Federal. Considerando a
ocorrência de registros de uso não religioso da Ayahuasca, sua identificação
possibilitará prevenir práticas que não se amoldam à proteção constitucional.
24. Trata-se, pois, de ratificar
a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca como rica e ancestral manifestação
cultural que, exatamente pela relevância de seu valor histórico, antropológico
e social, é credora da proteção do Estado, nos termos do art. 2o, “caput”, da
Lei 11.343/06 e do art. 215, §1º, da CF. Devem-se evitar práticas que possam
pôr em risco a legitimidade do uso religioso tradicionalmente reconhecido e
protegido pelo Estado brasileiro, incluindo-se aí o uso da Ayahuasca associado
a substâncias psicoativas ilícitas ou fora do ambiente ritualístico.
IV.II – COMERCIALIZAÇÃO
25. O GMT reconhece o caráter
religioso de todos os atos que envolvem a Ayahuasca, desde a coleta das plantas
e seu preparo, até seu armazenamento e ministração, de modo que seu praticante
de tudo participa com a convicção de que pratica ato de fé e não de comércio.
Daí decorre que o plantio, o preparo e a ministração com o fim de auferir lucro
é incompatível com o uso religioso que as entidades reconhecem como legítimo e
responsável.
26. Quem vende Ayahuasca não
pratica ato de fé, mas de comércio, o que contradiz e avilta a legitimidade do
uso tradicional consagrado pelas entidades religiosas.
27. A vedação da comercialização
da Ayahuasca não se confunde com seu custeio, com pagamento das despesas que
envolvem a coleta das plantas, seu transporte e o preparo. Tais custos de
manutenção, conforme seja o seu modo de organização estatutária, são suportados
pela comunidade usuária. E é evidente, também, que a produção da Ayahuasca tem
um custo, que pode variar de acordo com a região que a produz, a quantidade de
adeptos, a maior ou menor facilidade com que se adquire a matéria prima (cipó e
folha), se se trata de plantio da própria entidade ou se as plantas são obtidas
na floresta nativa, e tantas outras variáveis.
28. Historicamente, porém, de
acordo com a experiência das entidades religiosas chamadas a compor o Grupo
Multidisciplinar de Trabalho, esse custo é partilhado no seio da instituição
por meio das contribuições dos membros de cada entidade. Os sócios respondem
pelas despesas de manutenção da organização religiosa, nas quais estão
incluídos os gastos com a produção da Ayahuasca, com prestação de contas
regular.
29. O uso religioso responsável
na produção da Ayahuasca é delineado a partir da constatação das práticas das
entidades: a) cultivar as plantas e preparar a Ayahuasca, em princípio, para
seu próprio consumo; b) buscar a sustentabilidade na produção das espécies; e,
c) quando não possuir cultivo próprio e nenhuma forma de obtenção da matéria
prima na floresta nativa – sem prejuízo de buscar a auto-suficiência em prazo
razoável – nada obsta obter o chá mediante custeio das despesas tão somente,
evitando-se que pessoas, grupos ou entidades se dediquem, com exclusividade ou
majoritariamente, ao fornecimento a terceiros.
IV.III – SUSTENTABILIDADE DA
PRODUÇÃO DA AYAHUASCA
30. A cultura do uso religioso da
Ayahuasca, por se tratar de fé baseada em bebida extraída de plantas nativas da
Floresta Amazônica, pressupõe responsabilidade ambiental na extração das
espécies. As entidades religiosas devem buscar a auto-sustentabilidade na
produção da bebida, cultivando o seu próprio plantio.
IV.IV – TURISMO
31. Turismo, como atividade
comercial, deve ser evitado pelas entidades, que por se constituírem em instituições
religiosas, não devem se orientar pela obtenção de lucro, principalmente
decorrente da exploração dos efeitos da bebida.
32. A Constituição Federal
garante o livre exercício dos cultos religiosos, que tem como conseqüência o
direito à propagação da fé através do intercâmbio legitimo de seus membros.
Neste sentido todos têm direito de professar a sua fé livremente e de promover
eventos dentro dos limites legais estabelecidos. O que se quer evitar é que uma
prática religiosa responsável, séria, legitimamente reconhecida pelo Estado,
venha a se transformar, por força do uso descomprometido com princípios éticos,
em mercantilismo de substância psicoativa, enriquecendo pessoas ou grupos, que
encontram no argumento da fé apenas o escudo para práticas inadequadas.
IV.V - DIFUSÃO DAS INFORMAÇÕES
33. A publicidade da Ayahuasca
também tem sido motivo de deturpações e abusos, notadamente na Internet.
Observa-se, principalmente neste meio de comunicação, o oferecimento de toda
espécie de cursos e oficinas remuneradas, cujo elemento central é o uso da Ayahuasca
associado a promessas de experiências transformadoras descomprometidas com o
ritual religioso.
34. A partir das experiências das
entidades e de suas práticas rituais, verifica-se que o uso ritual responsável
é incompatível com a publicidade e a oferta de promessas de curas milagrosas,
de transformações pessoais arrebatadoras e com a indução das pessoas a
acreditarem que a Ayahuasca é o remédio para todos os males. É consenso no GMT
que quem faz uso religioso responsável não divulga informações que possam
induzir as pessoas a terem uma imagem fantasiosa da Ayahuasca e trata do tema
com discrição, sem fazer alardes dos efeitos da substância.
IV.VI - USO TERAPÊUTICO
35. Para fins deste relatório
“terapia” é compreendida como atividade ou processo destinado à cura,
manutenção ou desenvolvimento da saúde, que leve em conta princípios éticos
científicos.
36. Tradicionalmente, algumas
linhas possuem trabalhos de cura em que se faz uso da Ayahuasca, inseridos
dentro do contexto da fé. O uso terapêutico que tradicionalmente se atribui à
Ayahuasca dentro dos rituais religiosos não é terapia no sentido acima
definido, constitui-se em ato de fé e, assim sendo, ao Estado não cabe intervir
na conduta de pessoas, grupos ou entidades que fazem esse uso da bebida, em
contexto estritamente religioso. Em outra condição se encontram aqueles que se
utilizam da bebida fora do contexto religioso. Isto nada tem que ver com uso
religioso, e tal prática não está reconhecida como legítima pelo CONAD, que se
limitou a autorizar o uso da substância em rituais religiosos.
37. A utilização terapêutica da
Ayahuasca em atividade privativa de profissão regulamentada por lei dependerá
da habilitação profissional e respaldo em pesquisas científicas, pois de outra
forma haverá exercício ilegal de profissão ou prática profissional temerária.
38. Qualquer prática que implique
utilização de Ayahuasca com fins estritamente terapêuticos, quer seja da
substância exclusivamente, quer seja de sua associação com outras substâncias
ou práticas terapêuticas, deve ser vedada, até que se comprove sua eficiência
por meio de pesquisas científicas realizadas por centros de pesquisa vinculados
a instituições acadêmicas, obedecendo às metodologias científicas. Desse modo,
o reconhecimento da legitimidade do uso terapêutico da Ayahuasca somente se
dará após a conclusão de pesquisas que a comprovem.
39. Com fundamento nos relatos
dos representantes das entidades usuárias, verificou-se que as curas e soluções
de problemas pessoais devem ser compreendidas no mesmo contexto religioso das
demais religiões: enquanto atos de fé, sem relação necessária de causa e efeito
entre uso da Ayahuasca e cura ou soluções de problemas.
IV.VI - ORGANIZAÇÃO DAS ENTIDADES
40. O crescimento do uso da
Ayahuasca e a facilidade com que se pode comprar a bebida de pessoas que a
produzem sem compromisso com a fé têm levado ao surgimento de novas entidades,
que não possuem experiência no lidar com a bebida e seus efeitos, assim como
fazem mau uso da Ayahuasca, associando-a a práticas que nada têm a ver com
religião. O uso ritual caracterizado pela busca de uma identidade religiosa se
diferencia do uso meramente recreativo.
41. O uso religioso responsável
da Ayahuasca pressupõe a presença de pessoas experientes, que saibam lidar com
os diversos aspectos que envolvem essa prática, a saber: capacidade de
identificar as espécies vegetais e de preparar a bebida, reconhecer o momento
adequado de servi-la, discernir as pessoas a quem não se recomenda o uso, além
de todos os aspectos ligados ao uso ritualístico, conforme sua orientação
espiritual.
42. Embora se reconheça o ato de
fé solitário e isolado, usualmente a prática religiosa se desenvolve
coletivamente. É recomendável que os grupos constituam-se em organizações
formais, com personalidade jurídica, consolidando a idéia de responsabilidade,
identidade e projeção social, que possibilite aos usuários a prática religiosa
em ambiente de confiança.
IV.VII - PROCEDIMENTOS DE
RECEPÇÃO DE NOVOS ADEPTOS
43. Além dos princípios inerentes
a cada uma das linhas doutrinárias na recepção de novos membros, é razoável e
prudente que ao se ministrar a Ayahuasca seja levado em conta o relato de
alterações mentais anteriores, o estado emocional no momento do uso e que eles
não estejam sob efeito de álcool ou outras substâncias psicoativas.
44. Antes de ingerir pela
primeira vez, o interessado deve ser informado acerca de todas as condições que
se exigem para o uso da Ayahuasca, conforme a orientação de cada entidade. Uma
entrevista prévia, oral ou escrita, deve ser realizada no sentido de averiguar
as condições do interessado e a ele devem ser dados os esclarecimentos
necessários acerca dos efeitos naturais da bebida.
45. É recomendável que cada
entidade acompanhe os participantes até a finalização de seus rituais,
excetuada a saída previamente solicitada em casos excepcionais e com a anuência
do responsável.
IV.VIII – USO DA AYAHUASCA POR
MENORES E GRÁVIDAS
46. Tendo em vista a inexistência
de suficientes evidências cientificas e levando em conta a utilização secular
da Ayahuasca, que não demonstrou efeitos danosos à saúde, e os termos da
Resolução nº 05/04, do CONAD, o uso da Ayahuasca por menores de 18 (dezoito)
anos deve permanecer como objeto de deliberação dos pais ou responsáveis, no
adequado exercício do poder familiar (art. 1634 do CC); e quanto às grávidas,
cabe a elas a responsabilidade pela medida de tal participação, atendendo,
permanentemente, a preservação do desenvolvimento e da estruturação da
personalidade do menor e do nascituro.
V - CONCLUSÃO:
a. Considerando que o CONAD,
acolhendo parecer da Câmara de Assessoramento Técnico Científico, reconheceu a
legitimidade do uso religioso da Ayahuasca, nos termos da Resolução nº 05/04,
que instituiu o GMT para elaborar documento que traduzisse a deontologia do uso
da Ayahuasca, como forma de prevenir seu uso inadequado;
b. Considerando que o GMT, após
diversas discussões e análises, onde prevaleceu o confronto e o pluralismo de
idéias, considerou como uso inadequado da Ayahuasca a prática do comércio, a
exploração turística da bebida, o uso associado a substâncias psicoativas
ilícitas, o uso fora de rituais religiosos, a atividade terapêutica privativa
de profissão regulamentada por lei sem respaldo de pesquisas cientificas, o
curandeirismo, a propaganda, e outras práticas que possam colocar em risco a
saúde física e mental dos indivíduos;
c. Considerando que a dignidade
da pessoa humana é princípio fundante da República Federativa do Brasil, e
dentre os direitos e garantias dos cidadãos sobressai-se a liberdade de
consciência e de crença como direitos invioláveis, cabendo ao Estado, na forma
da lei, garantir a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (CF, arts.
1º, III, 5º, VI);
d. Considerando a decisão do INCB
(International Narcotics Control Board), da Organização das Nações Unidas,
relativa à Ayahuasca, que afirma não ser esta bebida nem as espécies vegetais
que a compõem objeto de controle internacional;
e. Considerando, por fim, que o
uso ritualístico religioso da Ayahuasca, há muito reconhecido como prática
legitima, constitui-se manifestação cultural indissociável da identidade das
populações tradicionais da Amazônia e de parte da população urbana do País,
cabendo ao Estado não só garantir o pleno exercício desse direito à
manifestação cultural, mas também protegê-la por quaisquer meios de
acautelamento e prevenção, nos termos do art. 2o, “caput”, Lei 11.343/06 e art.
215, caput e § 1º c/c art. 216, caput e §§ 1º e 4º da Constituição Federal.
O Grupo Multidisciplinar de
Trabalho aprovou os seguintes princípios deontológicos para o uso religioso da
Ayahuasca:
1. O chá Ayahuasca é o produto da
decocção do cipó Banisteriopsis caapi e da folha Psychotria viridis e seu uso é
restrito a rituais religiosos, em locais autorizados pelas respectivas direções
das entidades usuárias, vedado o seu uso associado a substâncias psicoativas
ilícitas;
2. Todo o processo de produção,
armazenamento, distribuição e consumo da Ayahuasca integra o uso religioso da
bebida, sendo vedada a comercialização e ou a percepção de qualquer vantagem,
em espécie ou in natura, a título de pagamento, quer seja pela produção, quer
seja pelo consumo, ressalvando-se as contribuições destinadas à manutenção e ao
regular funcionamento de cada entidade, de acordo com sua tradição ou
disposições estatutárias;
3. O uso responsável da Ayahuasca
pressupõe que a extração das espécies vegetais sagradas integre o ritual
religioso. Cada entidade constituída deverá buscar a auto-sustentabilidade em
prazo razoável, desenvolvendo seu próprio cultivo, capaz de atender suas
necessidades e evitar a depredação das espécies florestais nativas. A extração
das espécies vegetais da floresta nativa deverá observar as normas ambientais;
4. As entidades devem evitar o
oferecimento de pacotes turísticos associados à propaganda dos efeitos da
Ayahuasca, ressalvando os intercâmbios legítimos dos membros das entidades
religiosas com suas comunidades de referência;
5. Ressalvado o direito
constitucional à informação, recomenda-se que as entidades evitem a propaganda
da Ayahuasca, devendo em suas manifestações públicas orientar-se sempre pela
discrição e moderação no uso e na difusão de suas propriedades;
6. A prática do curandeirismo é
proibida pela legislação brasileira. As propriedades curativas e medicinais da
Ayahuasca – que as entidades conhecem e atestam – requerem uso responsável e
devem ser compreendidas do ponto de vista espiritual, evitando-se toda e qualquer
propaganda que possa induzir a opinião pública e as autoridades a equívocos;
7. Recomenda-se aos grupos que
fazem uso religioso da Ayahuasca que se constituam em organizações jurídicas,
sob a condução de pessoas responsáveis com experiência no reconhecimento e
cultivo das espécies vegetais sagradas, na preparação e uso da Ayahuasca e na
condução dos ritos;
8. Compete a cada entidade
religiosa exercer rigoroso controle sobre o sistema de ingresso de novos
adeptos, devendo proceder entrevista dos interessados na ingestão da Ayahuasca,
a fim de evitar que ela seja ministrada a pessoas com histórico de transtornos
mentais, bem como a pessoas sob efeito de bebidas alcoólicas ou outras
substâncias psicoativas;
9. Recomenda-se ainda manter
ficha cadastral com dados do participante e informá-lo sobre os princípios do
ritual, horários, normas, incluindo a necessidade de permanência no local até o
término do ritual e dos efeitos da Ayahuasca.
10. Observados os princípios
deontológicos aqui definidos, cabe a cada entidade e a seus membros
indistintamente, no relacionamento institucional, religioso ou social que
venham a manter umas com as outras, em qualquer instância, zelar pela ética e
pelo respeito mútuo.
PROPOSIÇÕES:
1. QUANTO ÀS PESQUISAS DO USO
TERAPÊUTICO DA AYAHUASCA EM CARÁTER EXPERIMENTAL:
a. Devem-se fomentar pesquisas
cientificas abrangendo as seguintes áreas: farmacologia, bioquímica, clínica,
psicologia, antropologia e sociologia, incentivando a multidisciplinaridade;
b. Sugere-se ao CONAD que promova
e financie, a partir de 2007, pesquisas relacionadas com o uso e efeitos da
Ayahuasca.
2. QUANTO À QUESTÃO AMBIENTAL E
AO TRANSPORTE:
a. Sugere-se ao CONAD que
considere a possibilidade de intercâmbio com o CONAMA, se possível lançando mão
do auxílio das entidades religiosas, no sentido de estabelecer medidas de
proteção às espécies vegetais que servem de matéria prima à Ayahuasca, por meio
de legislação específica para essas plantas de uso ritualístico religioso, as
quais não podem ser tratadas indistintamente como um produto florestal não
madeireiro.
b. Sugere-se ao CONAD ainda, que
faça os encaminhamentos devidos junto aos órgãos competentes do Estado, no
sentido de regulamentar o transporte interestadual da Ayahuasca entre as
entidades, ouvindo-se previamente os interessados.
3. QUANTO À EFETIVIDADE DOS
PRINCÍPIOS DEONTOLÓGICOS:
a. Sugere-se ao CONAD que estude
a possibilidade de fixar mecanismos de controle quanto ao uso
descontextualizado e não ritualístico da Ayahuasca, tendo como paradigma os
princípios deontológicos ora fixados, com efetiva participação de
representantes das entidades religiosas.
b. Solicita-se ao CONAD apoio
institucional para a criação de instituição representativa das entidades
religiosas que se forme por livre adesão, para o exercício do controle social
no cumprimento dos princípios deontológicos aqui tratados.
c. Sugere-se ainda, caso os
princípios deontológicos aqui definidos sejam acatados, que disto seja dada
ampla publicidade, preferencialmente com a realização de um segundo seminário
organizado pelo próprio CONAD auxiliado pelo Grupo Multidisciplinar de
Trabalho, do qual devem participar todas as entidades, sem prejuízo do
encaminhamento formal do ato a todos os órgãos dos Ministérios Públicos e da
Magistratura Federal e Estaduais, Polícia Federal e Secretarias de Segurança
Pública dos Estados.
Brasília, 23 de Novembro de 2006.
Dartiu Xavier da Silveira Filho
__________________________________________
Presidente do GMT – Representante
do CONAD
Edson Lodi Campos Soares
____________________________________________
Vice-Presidente do GMT -
Representante de Mestre José Gabriel da Costa
Paulina do Carmo Arruda
V.Duarte________________________________________
Representante da Secretaria
Nacional Antidrogas/GSIPR
Domingos Bernardo Gialluisi da
Silva Sá ___________________________________
Representante da Câmara de
Assessoramento Técnico-Científico do CONAD
Ester Kosovsky
_______________________________________________________
Universidade Federal do Rio de
Janeiro e OAB-RJ
Edward John Baptista das Neves
MacRae _________________________________
Membro do GMT - Representante do
CONAD
Roberta Salazar
Uchoa_________________________________________________
Membro do GMT - Representante do
CONAD
Isac Germano Karniol
__________________________________________________
Membro do GMT – Representante do
CONAD
Jair Araújo Facundes
__________________________________________________
Membro do GMT - Representante de
Mestre Raimundo Irineu Serra
Cosmo Lima de Souza
_________________________________________________
Membro do GMT - Representante de
Mestre Raimundo Irineu Serra
Alex Polari de Alverga
_________________________________________________
Membro do GMT - Representante de
Padrinho Sebastião
Luis Antônio Orlando Pereira
____________________________________________
Membro do GMT - Representante de
Outras Linhas
Wilson Roberto Gonzaga da Costa
_______________________________________
Membro do GMT - Representante de
Outras Linhas